Quando cheguei em mim

Quando cheguei em mim

Contexto histórico em que o livro está inserido.

 

Literatura marginal é aquela que expõe fatos que existem, mas ninguém gosta de falar.  Não importa se os fatos acontecem nas periferias ou nos centros das cidades.  Se ela ocorre nas famílias pobres ou ricas, o que move a Literatura marginal é o incômodo que ela causa ao ser exposta. E esse era um tema muito frequente na Geração Mimeógrafo.

Quando cheguei em mim

Esse é um dos livros que representa aquele momento.  E para entender o seu conteúdo, é preciso estabelecer um contexto histórico da época em que o livro foi escrito. E assim, de acordo com os fatos ocorridos, é possível destacar os seguintes. Em 28 de fevereiro de 1986, o governo havia lançado o Plano Cruzado I, cujo princípio era, de modo artificial, estabelecer inflação zero, a partir do congelamento de preços.

Entretanto, esse Plano Econômico provocou muitos desabastecimentos.  Mesmo assim, o governo segurou os preços até a eleição daquele ano.  Com essa atitude, veio a se beneficiar fortemente. Isso ficou comprovado, porque o governo conseguiu eleger todos os seus apadrinhados, e, inclusive, os deputados que iriam escrever a nova Constituição de 1988.

No entanto, para a decepção de todos, logo que passou as eufóricas eleições, o ardiloso plano de congelamento foi desfeito. E, como era de se esperar, a inflação subiu como um foguete. Por isso, em 21/11/1986, apenas seis dias depois da folclórica eleição, o governo lançou o Plano Cruzado II, que se comportaria como uma válvula de escape de toda a inflação reprimida durante o congelamento de preços.

Embora aquele plano vulpino tenha sido apenas mais um, dentre outros, em 01/02/1987, foi instalada a Assembleia Nacional Constituinte. E para acrescentar mais uma atitude do gestor daquela época, em 20/02/1987 o governo decretou moratória da dívida externa. Durante esses acontecimentos, ainda no mesmo ano, a população teve de provar do amargo veneno chamado inflação, a qual chegou a 363,4%, naquele ano.

2. Qual a proposta central do livro Quando cheguei em mim?

 

De acordo com o contexto acima, um livro de poesia independente, escrito, editado e divulgado por um poeta que vivia 24 horas por dia incorporado ao contexto da Geração Mimeógrafo, não poderia ser diferente do que ele é, ou seja, não poderia ser condescendente com atitudes rapinantes daquela época.

Em razão disso, Quando cheguei em mim é um livro que, não só expõe diferentes aspectos das relações humanas, como também destaca, de forma crítica, certas atitudes políticas aplicadas naquele fatídico ano de 1987. E assim, semelhante aos anteriores. Esse livro mantém os mesmos traços, as mesmas propostas, os mesmos processos, não só de produção, como também de distribuição, daqueles livros e autores que estão inseridos no contexto sociocultural denominado de Poesia independente.

Por que ler um livro de  Literatura marginal?

Para início de conversa, existem muitos motivos para ler, principalmente, um livro de poemas de literatura marginal. Dentre outros motivos está: primeiro, reforçar, na prática de leituras, algumas verdades sobre o que já foi dito sobre aquele “movimento” cultural. Segundo, para saber que as palavras da Língua Portuguesa mudam de significado conforme o interesse da classe dominante.

Naquela época, escrever um poema e estendê-lo em um varal ou reunir vários deles em um caderno, apostila ou livro, para depois sair com ele por aí. Divulgando aquele conteúdo em uma praça ou em bares, era um ato reprovado, não só por qualquer pai que desejava o melhor para o seu filho, como também, para qualquer pessoa ligada à imprensa, à educação, e, obviamente, à lei. Ou seja, escrever, ler, recitar poemas era um ato mal visto para qualquer membro da “sociedade”.

Então, a denominação de “marginal” está inserido em todo o contexto do parágrafo anterior, quem o seguisse era considerado a ovelha negra da família, já que fazer poesia e, principalmente, desejar viver dela, era um ato de extrema rebeldia contra tudo o que era visto como “normal”.

Portanto, aqueles abusados, aqueles aventureiros, com um monte de poemas debaixo do braço ou na memória, não davam a mínima importância ao que pensavam as pessoas cultas, os “burgueses”, formadores de opinião da época.  Muito menos, à polícia ou alguns generais.  Àqueles “marginais”, o mais importante era eles poderem dizer o que eles queriam, era divulgar seus poemas, de forma espontânea e natural.

Convém ler Quando cheguei em mim?

Sim, porque é necessário saber que, embora alguns “especialistas” digam que poeta marginal não lia nada e nem sabia o que estava fazendo, existe, pelo menos um deles, que lia e absorvia influência direta, não só dos clássicos poetas gregos, como também de autores como: Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Augusto dos Anjos, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Maiakovski, Kerouac, Whitman e muitos outros.

Esses autores influenciaram muito.  A presença deles pode ser destacada no que diz respeito à estrutura do verso, ao uso do vocabulário chulo, a incorporação do erótico e do humor. Como se percebe, essa poesia torna uma continuidade do Modernismo, da mesma forma como o Modernismo foi uma continuidade do Romantismo.

O que tem a Literatura marginal?

Ela explorado temas que, embora existam, ninguém quer falar, porque incomodam a sociedade que a tenta esconder. No entanto, autores como: Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Jean Jenet e outros recorreram a essa literatura e produzem grandes textos.

Porém não é só isso. A Literatura marginal tem outros temas que estendem-se ao longo do tempo.  Desde Caio Valério Catulo (84 – 54 a. C.), com sua linguagem coloquial e simulações improvisadas na sintaxe, a influenciar nomes como Baudelaire e Eliot.

A Poesia Marginal tem o mesmo que se encontra na poesia de Safo, nascida há milhares de anos, na ilha de Lesbos, o erótico. Tem também o que aparece em Gargântua e Pantagruel, isto é, a sátira e o realismo grotesco, o cinismo, o encontro de canalhas com suas grosseiras porcarias. Enfim, tudo está lá, o que mais faltam são leitores competentes para encontrar as retomadas.

3. exemplos de Literatura marginal:

 

3.1. QUANDO OS OLHOS PEDEM ATENÇÃO

 

É preciso, sim, é preciso,

um sensível espasmo de ótica

para observar,

o quanto de humano existe

no olhar de uma barata

querendo fugir

do bico de um cisne.

E isso me faz lembrar um feto

lutando:

contra uma sonda de aborto.

3.2. VALE O ESCRITO

 

Certo dia, andando pela cidade,

passei em frente a um circo.

Ali, vi animais quadrúpedes

com trombas que iam até ao chão

e com orelhas que pareciam abanos.

Ao lado deles, um aviso que dizia:

FILHOS DE ELEFANTE.

E eu acreditei.

Continuei o passeio,

e fui até a Assembleia.

E lá, vi sinais de corrupção,

de irresponsabilidades, de incompetência,

e alguns parlamentares que só discutiam

coisas de seus interesses.

Porém, na parte externa da parede,

havia um aviso escrito em grafite

que dizia:

FILHOS DA PUTA!!

E eu continuei acreditando.

3.3. AS OUTRAS

 

Em minha vida,

amei intensamente duas mulheres;

mas me casei mesmo foi com um homem.

Uma delas dizia

que eu tinha lindos seios

e com eles

eu poderia atrair qualquer macho.

A outra, não se cansava de repetir

que eu devia ir para um convento.

Meu Deus, que contraditórias,

a minha mãe e a minha avó…

3.4. Influência cultural externa

 

A influência cultural americana se impõe por meio do cinema, da música e economia. Por isso, até na poesia marginal era possível encontrar marcas daquela ‘contaminação’.  No livro Quando cheguei em mim, tem uns exemplos típicos.

UMA DOSE AMARGA

 

A imagem daquele mendigo

não se reflete nem no chafariz

da velha e efervescente praça.

Nos olhos dele,

já não há nenhum brilho

de esperança, de sonho ou de fé.

Ele brinca… Ele brinca de viajar

em um barquinho de papel, porém

levando às costa uma doze de plástico

como se fosse o personagem Rambo.

Ele se transporta à infância distante

para resgatar o sonho de uma doce felicidade

que julgou ser capaz de encontrar ao crescer.

Por isso, ele está cabisbaixo e triste,

ainda que o sol esteja brilhante.

Ao redor daquele homem só,

só existem o silêncio, o lamento e a dor.

O cenário é triste. É como se ele velasse

o seu solitário e esquecido cadáver.

3.5 BOM PARCEIRO

 

Certa noite chuvosa,

andando triste e sozinho

pelas escuras e desertas ruas,

Leonardo da Vinci

falou no meu ouvido:

_ Meu querido amigo pensador,

não se aborreça com o que falo.

Mas o universo é um sino imenso

e fizeram os deuses

da sua cabeça

o badalo.

DEPOIS DO CARNAVAL

À meia-noite, sob um lindo luar,

o meu vizinho  gay, irreverente, pergunta:

__ E agora, São Jorge, o que fazer?

Dei tanto que me sinto rota.

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